Qual carro vai para a pista primeiro?

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Parte de cima, caixa de câmbio, química e acabamentos


 A parte de baixo do motor já estava pronta, com pistões IASA personalizados, bielas de Calibra e virabrequim original com 86 mm de curso. Desse modo, o motor que originalmente era 1.8 agora tinha se tornado um legítimo 2.0. Agora, conforme a última postagem, vamos à parte de cima.

Mas a idéia era correr com o carro e aumentar a potência até o limite das bielas, que eu acreditava na época ser algo em torno dos 300 a 350 cv. O número "350 cv" não impressiona muito, mas era o que as minhas bielas permitiam e eu coloquei as melhores bielas que meu orçamento alcançou naquela época. Se pensarmos 350 cv, parece um número bem comum no mundo de hoje onde se fala de carros de rua com até míticos 1000 cv, mas se pensarmos que significava quadruplicar a potência original de 89 cv, a tarefa não parecia assim tão simples.

Mas voltando ao que importava: Aumentar cerca de 10% na cilindrada, se muito aumentaria a potência do motor para uns 100 cv. Ainda faltavam mais 250 cv para atingir a meta. E eu precisava decidir a maneira mais confiável e barata para chegar nesse patamar.

Decidi que não gastaria um minuto sequer trabalhando para modificar ou aprimorar o cabeçote. Após ter caído na armadilha de me meter com isso (já falei um pouco sobre esse episódio em outro post), aprendi o suficiente para concluir que as válvulas originais de 42 mm na admissão e 35 mm no escape eram mais que suficientes para minha pretensão de potência, bem como o desenho de dutos do cabeçote, haja vista que o modelo EFI, o famoso "monoponto", já vem com o cabeçote "moderno" que é o mesmo dos MPFI, com um desenho de dutos redondos que é superior ao desenho do modelo carburado, com dutos quadrados. Além do formato, nesse cabeçote os dutos de admissão estão mais altos, o que lhes confere uma geometria mais favorável ao fluxo.

Para mim essas partes não precisavam ser mexidas e com isso eu economizaria uns trocos para colocar em outras peças que me trariam melhores resultados. Tudo em nome do custo-benefício. Mas além de válvulas e dutos, os cabeçotes possuem também molas, pratinhos, tuchos, comandos, e no caso desse motor, também balancins. E aí é que reside o problema. O sistema de trem de válvulas desse motor é projetado para funcionar bem até 6500 rpm e um dos problemas mais comuns quando se prepara esse motor, é os balancins acabarem se soltando e danificando tudo, desde as válvulas até os próprios pistões e cilindros.

Então, apesar de um motor turbinado ultrapassar facilmente esse giro, ao decidir manter o cabeçote totalmente original eu decidi também que o motor não poderia girar muito acima disso. Mas o quanto, era algo que eu ainda não sabia bem. Segundo a mais tradicional fórmula de calcular a potência em cima do torque - P = T * RPM/716, onde P = potência e T = Torque, calculei que se para o motor atingir os tais 350 cv a 5500 rpm, o torque nessa rotação deveria ser da ordem de 45 kg. O torque máximo desse motor original é um pouco menos de 20 kg a cerca de 3000 rpm e isso significava que eu precisava mais que dobrar o enchimento dos cilindros.

Para prender o cabeçote no lugar, achei melhor não economizar tanto e comprei um kit de parafusos novo, original do motor mais moderno. Eles tem um tratamento metálico cinza de alta resistência contra a corrosão e a cabeça deles é redonda, com encaixe interno. São bem mais bonitos e não custam muito, porém necessitam de um soquete especial de encaixe TORX, então tive de comprar essa ferramenta também.


Parafusos originais após receberem um trato e posterior banho de zinco

Cortando a parte da teoria barata, pode-se dizer simplesmente que um motor com uma parte de cima pouco elaborada e uma parte de baixo reforçada só consegue atingir a potência necessária através da pura e simples PRESSÃO. Para obter a potência o recurso seria conscientemente fazer o motor trabalhar com a pressão mais alta possível. E se isso não fosse o suficiente, ou se a temperatura do ar fosse muito alta, entraria em ação um kit de óxido nitroso que além de aumentar a potência, resfriaria o ar. A pressão e o nitro garantiram facilmente que eu atingisse a minha meta de potência. Ou ao menos era isso que eu imaginava.




Motor no cofre: Tudo com seu devido acabamento intacto, antes de começar a funcionar

Para garantir a pressão eu contava com um turbo da família APL, com carcaça quente .48 e fria .42. Não sabia como esse turbo se comportaria com pressão alta, mas naquele momento era o que a casa oferecia. O coletor para acoplar o turbo era um fundido que eu nem sei a marca. É um design relativamente antigo e seu fluxo apesar de não ser dos melhores é bem superior a algumas peças com design mais moderno comercializadas atualmente. E ao contrário desses últimos, permite que se coloque turbos grandes,como por exemplo os que tem carcaça fria .70. O maior ponto negativo desse coletor é a impossibilidade de se mexer na vela do cilindro 3, porque a válvula wastegate fica exatamente na frente, bloqueando o acesso. Porém mais uma vez, era o que eu tinha comprado e estava determinado a usar.

Na admissão, tudo original. Coletor EFI, apenas recebeu shot peening estético e todas as peças de aço foram zincadas. A TBI ficou original e a única coisa que mudou foi o bico injetor, substituído por um de motor 2.0 álcool, o famoso "bico branco".


Detalhe do coletor de escape fundido, tampa do óleo anodizada em azul e parafusos TORX, com o soquete especial.

A injeção ficou a original mesmo. O projeto era extremamente simples e a única diferença em relação a turbinar um carro original, era que deveria funcionar com álcool e destaxado. Mas o ponto poderia ser avançado no distribuidor e o bico a álcool fazia a conversão, pois tinha bem mais vazão que o original.  Qualquer falta ou excesso poderia ser ajustada pelo próprio regulador de pressão original, que sob seu lacre tem um parafuso que o torna regulável. Assim eu economizei um dosador...

Para suprir o combustível na fase pressurizada eu contava com um gerenciador da marca Unidesign, fabricado em SP, que tinha tecnologia digital microprocessada e gerenciava bicos extra e também atraso de ponto. Uma vez que o combustível extra estava garantido por duas bombas de GTI compradas na PSRACE.

Depois faltava a caixa de câmbio. O que fazer num GM? Engrenagens forjadas do Sapinho? Trocar a caixa por uma de outro modelo? Adaptar tudo para usar a caixa F23 da Zafira/Vectra/Astra 16v? Ou quem sabe tentar a sorte com a caixa original?

As fotos abaixo já entregam o jogo. Na linha GM, todas as caixas de câmbio tem a mesma flange. Desde o motor 1.0 do corsa EFI até o motor do Vectra Elite 2.4 16v, todas as caixas de câmbio encaixam em todos os motores. E a GM utiliza um padrão de nomenclatura para determinar o torque suportado pela caixa de câmbio e consequentemente a aplicação dessa caixa nos vários modelos da fábrica. Por exemplo: Em alguns Vectra e Calibra, é original uma caixa com nomenclatura F20, que teoricamente deve ser aplicada em carros cujo motor tem 20 kg de torque. Alguns Vectra e Astra possuem a caixa F18 (18 kg de torque) e algumas Zafira, Astra e Vectra possuem a caixa de procedência alemã F23, da marca GETRAG, a mais robusta de todas as nacionais para motores transversais (23 kg de torque).

Apesar dessas siglas, isso não significa que a caixa só serve exatamente para essa faixa de torque. É uma nomenclatura mais genérica e as caixas aguentam bem mais. O meu carro saiu da linha de montagem com uma caixa F16 e mais uma vez, sabendo que não seria o modelo ideal, no momento era o que a casa oferecia.

Então a caixa foi desmontada e estava em ótimo estado, apesar da alta quilometragem. Lavamos tudo com cuidado, levamos a carcaça para o shot peening estético, pintamos os acabamentos, zincamos as peças metálicas e montamos tudo novamente.

A embreagem foi fornecida pela FreioMáquinas, com volante do motor 16v, disco de 4 pastilhas sem molas e prensa do modelo 16v com membrana dupla. Essa embreagem é uma das coisas mais robustas que coloquei no carro e até os dias de hoje ela ainda me acompanha. O acionamento do pedal ficou extremamente pesado, mas a embreagem nunca patinou e ao menos até hoje nunca tive problema de desgaste nas bronzinas axiais do virabrequim. Porém, com uma embreagem assim só se pode usar o rolamento de embreagem do vectra, com carcaça de metal. Os rolamentos com carcaça plástica não aguentam o castigo.




Com tudo montado, agora o que faltava era apenas a parte química. E mais uma vez, em nome da durabilidade, resolvemos gastar mais para gastar uma vez só. Compramos todos os fluidos da Motul. Desde o líquido de freio DOT5.1, passando pelo fluido do radiador Inugel, óleo de caixa sintético Gear 300 de baixa viscosidade até o mais importante: O óleo de motor sintético do modelo 8100. Da Molykote vieram os aditivos A2 para o motor e FC para a caixa de câmbio.


Esperávamos assim que o motor e a caixa ficassem bem protegidos contra o atrito. Agora só faltava fazer o brinquedo funcionar.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

E começa a preparação...



Bem, não estamos respeitando uma ordem cronológica estritamente precisa, mas afinal... Isso é apenas um blog. Então, depois de tanta história triste, história longa, história louca... Vou colocar um pouco da preparação do carro na época, antes que o blog perca todos os seus 3 leitores habituais...
Já havia montado alguns motores, já havia feito alguma coisa em performance e já havia tido contato com muita informação. Nesse ponto eu achei que já estava apto a tentar montar um motor de alta potência, com um pouco mais de sofisticação do que é usual nesse meio. Tudo isso sempre com o objetivo de andar o máximo com o menor gasto possível.
Tudo começou com um kit usado, com um turbo APL525. Segundo o dono anterior, o kit estava em uma Ipanema carburada com motor original e rendia o curioso número de 218 cv. Coisa que eu  - e provavelmente ninguém -  nunca soube se era fato, porque na época não tinha dinamômetro de rolo por aqui. Afinal, se é para estimar um valor, por que não 200, 215 ou 220 hp? Enfim, coisas de preparador...


T.O. Castro e RaFASTra só no apoio moral

No Kadett, o motor era o original, um OHC 1.8 (8v) com a injeção monoponto Rochester. Um bom motor, porém com algumas limitações. Então tentei atacar os pontos mais fracos primeiro, na esperança de garantir um bom alicerce.
Falando em bom português, as primeiras coisas que precisavam ser trocadas eram os pistões e as bielas. Principalmente as bielas, pois as originais são realmente fracas. Além de serem peças fundidas, seu design também foi idealizado para economia de combustível e boa resposta em baixas rotações. Isso significa que no motor original elas funcionam muito bem, porém com maior torque e rpm elas são insuficientes. E para aqueles que não sabem, quando há a ruptura de uma biela, a quebra tem potencial para ser muito severa, colocando em risco virtualmente o motor inteiro.


Bielas: C20XE na esquerda e original do 1.8 na direita

Assim, a primeira opção foi montar o motor apenas com as bielas do C20XE, as famosas "bielas de calibra", que também são originais do Vectra GSi, mantendo os pistões e o virabrequim originais. Mas para isso seria necessário retrabalhar os pistões para colocar as travas de pino, já que a biela original funciona com pinos prensados por interferência e as bielas de C20XE possuem buchas de bronze e funcionam com o pino flutuante. Como os pistões e os cilindros já apresentavam certo desgaste, fazer esse retrabalho seria o que eu considerei na época "colocar dinheiro bom em coisa ruim". Naturalmente o correto seria comprar pistões forjados, mas esses tinham um custo significativamente maior. E ainda existia outro problema: Não havia no mercado pistões forjados para o motor 1.8, somente para o 2.0.
Só que nesse caso, não daria certo usar o virabrequim do 1.8 com os pistões 2.0, porque a altura do pino é diferente. Caso eu fosse usar os pistões 2.0 com o virabrequim 1.8, os pistões ficariam muito abaixo da linha do bloco. Então achei que seria uma boa oportunidade para colocar o virabrequim 86 mm do motor 2.0, que serve perfeitamente no motor 1.8.
Assim, foi tudo substituído: Os pistões originais de 84,8 mm foram substituídos por pistões IASA 86,5 mm. As bielas originais foram substituídas por bielas originais GM do motor C20XE e o virabrequim original de 79,5 mm foi substituído pelo original do 2.0 com 86 mm, porém já do motor mais moderno, que já vem com a roda fônica. Na parte de baixo, a única coisa que ficou original foi o bloco, mas que também teve de ser retificado para os novos pistões de diâmetro maior. E agora o motor do carro era oficialmente 2.0 litros.
Foi um investimento razoável em peças e mão de obra para montar essa parte de baixo, e decidi que economizar nas outras peças como bomba de óleo, juntas e bronzinas seria economia burra. Então compramos bronzinas de mancal e biela novas, jogo de juntas novo com junta de cabeçote metálica original do motor 2.0 flex, bombas de óleo e de água novas e as correias do alternador e dentada novas. Tudo era necessário, porém os custos iam aumentando cada vez mais. Até esse ponto, eu já tinha gasto mais de R$ 3 mil em peças e serviços como polimento do virabrequim, retífica, brunimento, banho químico para limpeza, jateamento e faceamento do deck do bloco, para uma vedação perfeita.
O gasto estava acima do meu orçamento, porém eu estava me certificando de fazer o serviço da melhor forma possível, para que durasse bastante tempo e fosse feito uma vez só. Mas apesar de tudo, essas modificações são as mais comuns em motores turbinados. Verdadeiro feijão com arroz. Então se eu queria um resultado diferente, eu tinha que dar um toque diferente.

Assim, a retífica foi feita com uma peça chamada "torque plate", conhecida em algumas oficinas como "chapão". Trata-se de uma placa de aço bem grossa com os furos do pistão e dos parafusos do cabeçote, que deve ser aparafusada no motor simulando o cabeçote. Explico: Quando o cabeçote é torqueado no bloco, a força exercida pelos parafusos distorce as paredes dos cilindros. Se os cilindros forem então retificados sem o torque dos parafusos, quando esses foram instalados, haverá uma distorção na superfície já retificada, prejudicando a vedação dos anéis, aumentando o "blowby", causando maior contaminação do óleo por combustível e reduzindo a potência. O serviço de retífica foi concluído com um brunimento com lixa mais fina do que o normal, uma técnica que reduz a necessidade de amaciamento e melhora a vedação dos cilindros, porém os sulcos mais rasos da lixa fina acabam desgastando mais rapido, espelhando os cilindros com menor quilometragem.

Mas ainda antes de ser retificado, o bloco recebeu outros tratamentos: Primeiramente ele foi todo jateado externamente, para retirar todos os resquícios de tinta e graxa dos anos rodando na rua. Depois foram retirados todos os selos e ele recebeu um banho químico para garantir a limpeza de todas as galerias de óleo. Em seguida uma lavagem manual para eliminar quaisquer resíduos da granalha do jateamento e só então ele foi retificado com o torque plate e recebeu o brunimento fino.
Com o bloco pronto, chegou a hora dos pistões. Eles eram IASA, de um modelo bruto, para usinagem customizada, com cabeça reta de 8 mm de espessura e não havia cavas de válvula ou poço. Era preciso determinar a taxa e usinar a cabeça para ficar no mesmo nível do bloco. Eu já havia decido que a taxa ficaria na casa dos 8,5, que é um nível seguro para alta potência sem causar problemas constantes de junta do cabeçote. Isso permitiria que futuramente eu trocasse as bielas por outras mais fortes e mantivesse os mesmos pistões.
Era hora de, mais uma vez temperar o arroz e feijão com um pouquinho de conhecimento diferenciado. Ao invés de uma simples cava redonda, decidimos fazer uma cava semi-circular com um "squish deck" em espelho da câmara de combustão no cabeçote. Nesse desenho, a taxa foi calculada pra 8,6:1 e foi usinada também uma área protuberante que ficava acima do bloco, com o objetivo de aproximar-se ao máximo do cabeçote ocupando o espaço da junta. Essas técnicas servem para turbilhonar a mistura em direção à vela de ignição, o que quando feito  corretamente permite que se use uma taxa de compressão maior, sem gerar pré ignição, aumentando a eficiência da queima.

Decidi também aplicar Molykote nas saias dos pistões para reduzir o atrito e assim minimizar os riscos de prender o pistão no bloco, por excesso de dilatação. Os produtos a base de bissulfeto de molibidênio  como por exemplo o spray D321-R já eram velhos conhecidos e tínhamos bastante experiência com eles em diversas aplicações, inclusive em motores. Então, apesar de na época ser bastante desconhecido no ramo de preparação, pra nós não era novidade.

Usamos Molykote também em outras partes de atrito do motor, como munhões do virabrequim e bronzinas. Fora isso, foi apenas uma montagem criteriosa, confirmando as medidas importantes, folgas, acertando as pontas de anel, ajustando o "crunch" de bronzinas e colando corretamente  todas as partes que não são vedadas com juntas específicas.


E assim foi montada a parte de baixo do motor. Agora faltava a parte de cima....



domingo, 6 de dezembro de 2009

Choque de realidade: Desistindo de acelerar na rua



Em alguma época de 2005, T.O. Castro, os irmãos Andreis, RaFASTra e outros apaixonados por carros da região de Porto Alegre estavam em plena atividade nos rachas de rua. E eu me incluía entre eles.  Meu projeto inicial era justamente fazer um carro de rua que desse para andar nas corridas, ou vice versa. Assim eu poderia participar de pegas tanto na rua como na pista. Ser perseguido e constrangido pela polícia e autoridades de trânsito, ficar acordado até tarde frequentando postinhos e outros lugares desse tipo, eventualmente ter o carro recolhido ou mesmo acabar dando explicações a um juiz faziam parte da nossa rotina.

Mas infelizmente esses não eram os piores problemas que ocorriam. O mundo dos rachas de rua, ao contrário do que prega a mídia sensacionalista, não é composto por pessoas loucas, inconsequentes e inescrupulosas que aceleram seus carros a qualquer hora e em qualquer lugar, assumindo o risco de matar pedestres, motoqueiros e outros motoristas simplesmente por sadismo ou prazer.

Na verdade, o próprio termo "racha" não é utilizado nesses círculos. O pessoal prefere "aceleras" ou "pegas". A idéia dos pegas noturnos é levar os dois carros para um local dos arredores da cidade que seja distante do trânsito, em um horário em que poucas pessoas estejam por perto. E lá estando, o que se faz é acelerar os dois carros em uma competição o mais "limpa" possível para determinar qual carro é o mais rápido. Qual foi melhor preparado, quem é o melhor mecânico e assim por diante. Pessoas por perto, pedestres, motos, outros veículos... Tudo isso na verdade só atrapalha quem realmente prepara carros para correr na rua.

Isso pode parecer insignificante, mas na realidade é importante, pois mostra o quanto o racha de rua é diferente daquilo que é proposto - ou imposto - pela grande mídia, que propaga que as pessoas que aceleram na rua o fazem para desafiar a lei, para obterem uma sensação de adrenalina através da transgressão, que são simplesmente arruaceiros desorganizados, desleixados, irresponsáveis e inconsequentes.

E isso não é verdade, essa visão não leva em conta toda a realidade do processo. Dentro das oficinas há toda uma preparação do carro e bem ou mal, também do "piloto", que ao começar a frequentar esse círculo passa a ter contato com pessoas mais experientes que conversam sobre os riscos direta ou indiretamente, avisando-o sobre todos os perigos de andar na rua em alta velocidade, ou simplesmente contando suas experiências e as histórias de todo mundo que se deu bem ou mal fazendo isso. Sem falar nas vezes em que ele vai assistir os pegas com seus companheiros, enquanto aguarda seu carro ficar pronto, o que geralmente leva um determinado tempo e consome uma certa quantia.

Ou seja: Por mais inexperiente que seja o rapazote que entra nesse mundo através de uma oficina mecânica de preparação, antes de ele começar de fato a se arriscar nas ruas em alta velocidade ele já recebeu uma boa quantidade de informações e relatos de experiências que lhe deram uma noção do que ele pode ou não fazer e o que ele deve ou não temer, fazendo assim com que ele tenha uma condição muito maior de gerenciar o risco a que está se submetendo.

É claro que o mundo é composto de vários tipos de pessoas e uma situação assim não é controlada por ninguém. E nesse meio, assim como em qualquer outro, existem os inconsequentes e os irresponsáveis, insclusive ocupando as mais variadas posições dentro desse sistema. E aí que reside a raiz de todo o problema.

Mais do que somente pessoas que querem preparar seus carros e medir forças com seus oponentes em uma disputa que pode ser ilegal, mas é legítima e verdadeira, existem também aqueles que são seduzidos por esse mundo, mas não têm a disposição, capacidade ou mesmo a determinação para chegarem a ter um carro preparado. Esses últimos são motivados na maioria das vezes pela vontade de aparecer mais do que os outros. Não tendo carro para acelerar não são considerados "ninguém" dentro do círculo e então começam a fazer todo o tipo de peripécias perigosas no intuito de chamar a atenção. Cavalos-de-pau, andar em altíssima velocidade em locais inadequados, fazer rolos (burnouts) em locais de aglomeração de pessoas... Enfim, todo o tipo de imprudências, que quando são associadas a inexperiência e imperícia, fazem com que os "piloucos" coloquem em risco a si mesmos e também a terceiros.

Essas pessoas são consideradas "chave-de-cadeia" ou "queima-filme" entre o pessoal que tem carro para acelerar, pois elas atraem a polícia com suas atitudes inoportunas e acabam atrapalhando o andamento dos aceleras. Mas entre os que vão para apenas assistir, eles são uma atração diferente: Eles fazem "graça para o diabo rir", ou seja: Se arriscam para aparecerem, mesmo que ganhando somente má fama.

Até que um dia, em um postinho na Av. Nilo Peçanha, todos aguardavam surgir algum carro para acelerar. Honestamente, nem lembro que carros eram... Mas apareceram e instalou-se o tradicional burburinho: Correria, todos entrando em seus carros para seguir os que iriam acelerar e poder assitir o embate. Nisso, alguns trocavam entre si a informação correta e gritavam uns para os outros o local errado, para que os "queima-filme" não descobrissem o local correto e não pudessem assim atrapalhar e chamar a atenção das autoridades. Nada além do de sempre...

E nisso um Astra zerinho parou e deu carona para um outro rapaz que estava também querendo ir para o pega... O motorista do Astra, que era um carro totalmente original, possivelmente da família, estava "azulando" o cano em plena Nilo Peçanha, para cima e para baixo de forma extremamente imprudente, na tentativa de chamar a atenção. Isso poderia ter sido um prelúdio do que viria, ou mesmo um bom motivo para o rapaz não aceitar a carona oferecida... Poucos segundos depois de o caroneiro embarcar no carro, ouviu-se um tremendo barulho de pneus e logo após a colisão.

Todos correram em direção ao acidente e nós fomos os primeiros a chegar lá. O Astra que andava em uma velocidade extremamente incompatível não só com a lei, mas sim com a própria rua, errou o traçado da curva, tirou o pé e, por sua imperícia, perdeu o controle do carro que atravessou o canteiro central e capotou, infelizmente sobre uma grande árvore, atingindo-a de cheio com o teto do lado do passageiro

Os bombeiros chegaram após alguns minutos e começaram a cortar os galhos da árvore para acessar o carro. Eu e alguns outros populares ainda ajudamos a tirar os galhos do caminho, para que pudessem trabalhar melhor. Quando conseguiram acessar o carro, tive um choque. O bombeiro verificou primeiramente o passageiro e rapidamente fez um sinal de negativo para seus colegas. Saiu imediatamente dali e foi socorrer o motorista.

O passageiro estava, sem a menor sombra de dúvidas, morto. Caminhei para trás... Me escorei em uma árvore do outro lado da rua e sem saber o que pensar, fiquei apenas observando. E sozinho ali, por talvez uma meia hora ou quarenta e cinco minutos, pude ver os bombeiros cortarem o carro com suas potentes ferramentas, retirarem o motorista das ferragens e colocarem na ambulância que partiu e depois a multidão se dissipando aos poucos. Vi também chegar a família do passageiro, os amigos tentando consolar a mãe, que estava confusa e não sabia o que acontecia, só gritava: "Cadê o meu filho? Me mostrem o meu filho!"

Cedo ou tarde ela iria acabar descobrindo... Quando se deu conta, caminhou até as ferragens, mesmo com amigos tentando impedir. Chegando lá, o que ela viu foi seu filho, morto, pendurado de cabeça para baixo em um carro totalmente destruído. Nem posso imaginar o que ela sentiu, pois naquele momento eu mesmo me senti mal... Até então estava anestesiado, como que assitindo um filme trágico, um drama da segunda guerra mundial... Como se eu não fizesse parte daquilo que houve...

Mas quando vi essa cena, de alguma forma me senti  também responsável por aquilo tudo. Senti enjoo e ânsia de vômito... Se eu não estivesse ali alimentando aquele burburinho, não teria sido parte da platéia a quem esses inconsequentes sempre querem impressionar. E todo mundo sabe que sem platéia, não tem espetáculo...

Fui embora.

Nos dias seguintes, conversei muito com meus amigos que frequentavam esse círculo. Há algum tempo já estávamos debatendo sobre esse tipo de acontecimento e que os "chaves-de cadeia" só iriam parar quando a polícia agisse, o que só iria acontecer quando a imprensa caísse em cima dos rachas, o que só iria acontecer quando ocorresse mais uma morte... Discutimos muito, mas não é fácil abandonar um mundo, uma realidade. Existem amigos que não pensam da mesma forma, existem hábitos que não são facilmente modificados e existe sobretudo, a paixão pelos carros, pela velocidade e pela preparação... E essa é a mais difícil de suprimir.

Sabíamos que os pegas de rua existiam desde sempre e provavelmente jamais deixariam de existir. Muitas vezes esse mundo é romantizado em histórias e filmes, gravando no subconsciente popular uma idéia de que  quem corre pode até ser "bandido", mas será sempre um do tipo charmoso e interessante, do tipo "James Dean", "American Grafitti" ou "The Fast and The Furious".

Mas concluímos que muita coisa mudou em relação àqueles tempos. Hoje em dia qualquer um pode ter acesso a um carro potente de fábrica, coisa que não era assim vinte anos atrás. E sem um carro potente, fica bem mais difícil de cometer imprudências. Na verdade, um carro lento é tão patético, que as pessoas ficam  constrangidas em sequer tentar... Para conseguir andar num carro de 120 cv que não custasse uma fortuna, há vinte anos atrás você deveria levar seu Chevette, Fusca ou Passat numa oficina de preparação, gastar uma boa quantia e ainda aguardar ficar pronto. E depois de preparado o carro consumia mais combustível, ficava desagradável de andar, precisava de combustível diferenciado e assim por diante. Envolvia QUERER MUITO ter um carro com mais potência.

Hoje em dia qualquer iniciante de internet compra por impulso um Marea Turbo a um preço menor do que o de um popular zero km e por uma modesta quantia compra um chip pelo correio e passa a dirigir um carro de mais de 250 cv. Não há aprendizado, não há conversas ou troca de experiências. Não há espera,  e nem reflexão, é "plug and play". Não há realidade envolvida... O cara simplemente passa a ter um canhão nas mãos e não tem a menor idéia de como usá-lo. E quando a realidade aparece nesses casos, em geral é em forma de um poste, árvore ou a traseira de um caminhão...

E há vinte anos atrás as cidades eram menores, menos populosas, os lugares tradicionais de rachas eram mais afastados e menos pessoas transitavam por eles.

Além disso, os meios de comunicação eram mais rudimentares, não havia celular, não haviam câmeras portáteis e não havia internet... Tudo isso modificava a dinamica das coisas pois você não poderia ter na manhã seguinte a péssima notícia de que a placa de seu carro havia sido filmada enquanto você estava acelerando na rua e agora estava na internet, em um video do Youtube...

Realmente, por diversos motivos, não dava mais para acelerar na rua. Então iríamos acelerar na pista... Se nos deixassem...