Qual carro vai para a pista primeiro?

domingo, 6 de dezembro de 2009

Choque de realidade: Desistindo de acelerar na rua



Em alguma época de 2005, T.O. Castro, os irmãos Andreis, RaFASTra e outros apaixonados por carros da região de Porto Alegre estavam em plena atividade nos rachas de rua. E eu me incluía entre eles.  Meu projeto inicial era justamente fazer um carro de rua que desse para andar nas corridas, ou vice versa. Assim eu poderia participar de pegas tanto na rua como na pista. Ser perseguido e constrangido pela polícia e autoridades de trânsito, ficar acordado até tarde frequentando postinhos e outros lugares desse tipo, eventualmente ter o carro recolhido ou mesmo acabar dando explicações a um juiz faziam parte da nossa rotina.

Mas infelizmente esses não eram os piores problemas que ocorriam. O mundo dos rachas de rua, ao contrário do que prega a mídia sensacionalista, não é composto por pessoas loucas, inconsequentes e inescrupulosas que aceleram seus carros a qualquer hora e em qualquer lugar, assumindo o risco de matar pedestres, motoqueiros e outros motoristas simplesmente por sadismo ou prazer.

Na verdade, o próprio termo "racha" não é utilizado nesses círculos. O pessoal prefere "aceleras" ou "pegas". A idéia dos pegas noturnos é levar os dois carros para um local dos arredores da cidade que seja distante do trânsito, em um horário em que poucas pessoas estejam por perto. E lá estando, o que se faz é acelerar os dois carros em uma competição o mais "limpa" possível para determinar qual carro é o mais rápido. Qual foi melhor preparado, quem é o melhor mecânico e assim por diante. Pessoas por perto, pedestres, motos, outros veículos... Tudo isso na verdade só atrapalha quem realmente prepara carros para correr na rua.

Isso pode parecer insignificante, mas na realidade é importante, pois mostra o quanto o racha de rua é diferente daquilo que é proposto - ou imposto - pela grande mídia, que propaga que as pessoas que aceleram na rua o fazem para desafiar a lei, para obterem uma sensação de adrenalina através da transgressão, que são simplesmente arruaceiros desorganizados, desleixados, irresponsáveis e inconsequentes.

E isso não é verdade, essa visão não leva em conta toda a realidade do processo. Dentro das oficinas há toda uma preparação do carro e bem ou mal, também do "piloto", que ao começar a frequentar esse círculo passa a ter contato com pessoas mais experientes que conversam sobre os riscos direta ou indiretamente, avisando-o sobre todos os perigos de andar na rua em alta velocidade, ou simplesmente contando suas experiências e as histórias de todo mundo que se deu bem ou mal fazendo isso. Sem falar nas vezes em que ele vai assistir os pegas com seus companheiros, enquanto aguarda seu carro ficar pronto, o que geralmente leva um determinado tempo e consome uma certa quantia.

Ou seja: Por mais inexperiente que seja o rapazote que entra nesse mundo através de uma oficina mecânica de preparação, antes de ele começar de fato a se arriscar nas ruas em alta velocidade ele já recebeu uma boa quantidade de informações e relatos de experiências que lhe deram uma noção do que ele pode ou não fazer e o que ele deve ou não temer, fazendo assim com que ele tenha uma condição muito maior de gerenciar o risco a que está se submetendo.

É claro que o mundo é composto de vários tipos de pessoas e uma situação assim não é controlada por ninguém. E nesse meio, assim como em qualquer outro, existem os inconsequentes e os irresponsáveis, insclusive ocupando as mais variadas posições dentro desse sistema. E aí que reside a raiz de todo o problema.

Mais do que somente pessoas que querem preparar seus carros e medir forças com seus oponentes em uma disputa que pode ser ilegal, mas é legítima e verdadeira, existem também aqueles que são seduzidos por esse mundo, mas não têm a disposição, capacidade ou mesmo a determinação para chegarem a ter um carro preparado. Esses últimos são motivados na maioria das vezes pela vontade de aparecer mais do que os outros. Não tendo carro para acelerar não são considerados "ninguém" dentro do círculo e então começam a fazer todo o tipo de peripécias perigosas no intuito de chamar a atenção. Cavalos-de-pau, andar em altíssima velocidade em locais inadequados, fazer rolos (burnouts) em locais de aglomeração de pessoas... Enfim, todo o tipo de imprudências, que quando são associadas a inexperiência e imperícia, fazem com que os "piloucos" coloquem em risco a si mesmos e também a terceiros.

Essas pessoas são consideradas "chave-de-cadeia" ou "queima-filme" entre o pessoal que tem carro para acelerar, pois elas atraem a polícia com suas atitudes inoportunas e acabam atrapalhando o andamento dos aceleras. Mas entre os que vão para apenas assistir, eles são uma atração diferente: Eles fazem "graça para o diabo rir", ou seja: Se arriscam para aparecerem, mesmo que ganhando somente má fama.

Até que um dia, em um postinho na Av. Nilo Peçanha, todos aguardavam surgir algum carro para acelerar. Honestamente, nem lembro que carros eram... Mas apareceram e instalou-se o tradicional burburinho: Correria, todos entrando em seus carros para seguir os que iriam acelerar e poder assitir o embate. Nisso, alguns trocavam entre si a informação correta e gritavam uns para os outros o local errado, para que os "queima-filme" não descobrissem o local correto e não pudessem assim atrapalhar e chamar a atenção das autoridades. Nada além do de sempre...

E nisso um Astra zerinho parou e deu carona para um outro rapaz que estava também querendo ir para o pega... O motorista do Astra, que era um carro totalmente original, possivelmente da família, estava "azulando" o cano em plena Nilo Peçanha, para cima e para baixo de forma extremamente imprudente, na tentativa de chamar a atenção. Isso poderia ter sido um prelúdio do que viria, ou mesmo um bom motivo para o rapaz não aceitar a carona oferecida... Poucos segundos depois de o caroneiro embarcar no carro, ouviu-se um tremendo barulho de pneus e logo após a colisão.

Todos correram em direção ao acidente e nós fomos os primeiros a chegar lá. O Astra que andava em uma velocidade extremamente incompatível não só com a lei, mas sim com a própria rua, errou o traçado da curva, tirou o pé e, por sua imperícia, perdeu o controle do carro que atravessou o canteiro central e capotou, infelizmente sobre uma grande árvore, atingindo-a de cheio com o teto do lado do passageiro

Os bombeiros chegaram após alguns minutos e começaram a cortar os galhos da árvore para acessar o carro. Eu e alguns outros populares ainda ajudamos a tirar os galhos do caminho, para que pudessem trabalhar melhor. Quando conseguiram acessar o carro, tive um choque. O bombeiro verificou primeiramente o passageiro e rapidamente fez um sinal de negativo para seus colegas. Saiu imediatamente dali e foi socorrer o motorista.

O passageiro estava, sem a menor sombra de dúvidas, morto. Caminhei para trás... Me escorei em uma árvore do outro lado da rua e sem saber o que pensar, fiquei apenas observando. E sozinho ali, por talvez uma meia hora ou quarenta e cinco minutos, pude ver os bombeiros cortarem o carro com suas potentes ferramentas, retirarem o motorista das ferragens e colocarem na ambulância que partiu e depois a multidão se dissipando aos poucos. Vi também chegar a família do passageiro, os amigos tentando consolar a mãe, que estava confusa e não sabia o que acontecia, só gritava: "Cadê o meu filho? Me mostrem o meu filho!"

Cedo ou tarde ela iria acabar descobrindo... Quando se deu conta, caminhou até as ferragens, mesmo com amigos tentando impedir. Chegando lá, o que ela viu foi seu filho, morto, pendurado de cabeça para baixo em um carro totalmente destruído. Nem posso imaginar o que ela sentiu, pois naquele momento eu mesmo me senti mal... Até então estava anestesiado, como que assitindo um filme trágico, um drama da segunda guerra mundial... Como se eu não fizesse parte daquilo que houve...

Mas quando vi essa cena, de alguma forma me senti  também responsável por aquilo tudo. Senti enjoo e ânsia de vômito... Se eu não estivesse ali alimentando aquele burburinho, não teria sido parte da platéia a quem esses inconsequentes sempre querem impressionar. E todo mundo sabe que sem platéia, não tem espetáculo...

Fui embora.

Nos dias seguintes, conversei muito com meus amigos que frequentavam esse círculo. Há algum tempo já estávamos debatendo sobre esse tipo de acontecimento e que os "chaves-de cadeia" só iriam parar quando a polícia agisse, o que só iria acontecer quando a imprensa caísse em cima dos rachas, o que só iria acontecer quando ocorresse mais uma morte... Discutimos muito, mas não é fácil abandonar um mundo, uma realidade. Existem amigos que não pensam da mesma forma, existem hábitos que não são facilmente modificados e existe sobretudo, a paixão pelos carros, pela velocidade e pela preparação... E essa é a mais difícil de suprimir.

Sabíamos que os pegas de rua existiam desde sempre e provavelmente jamais deixariam de existir. Muitas vezes esse mundo é romantizado em histórias e filmes, gravando no subconsciente popular uma idéia de que  quem corre pode até ser "bandido", mas será sempre um do tipo charmoso e interessante, do tipo "James Dean", "American Grafitti" ou "The Fast and The Furious".

Mas concluímos que muita coisa mudou em relação àqueles tempos. Hoje em dia qualquer um pode ter acesso a um carro potente de fábrica, coisa que não era assim vinte anos atrás. E sem um carro potente, fica bem mais difícil de cometer imprudências. Na verdade, um carro lento é tão patético, que as pessoas ficam  constrangidas em sequer tentar... Para conseguir andar num carro de 120 cv que não custasse uma fortuna, há vinte anos atrás você deveria levar seu Chevette, Fusca ou Passat numa oficina de preparação, gastar uma boa quantia e ainda aguardar ficar pronto. E depois de preparado o carro consumia mais combustível, ficava desagradável de andar, precisava de combustível diferenciado e assim por diante. Envolvia QUERER MUITO ter um carro com mais potência.

Hoje em dia qualquer iniciante de internet compra por impulso um Marea Turbo a um preço menor do que o de um popular zero km e por uma modesta quantia compra um chip pelo correio e passa a dirigir um carro de mais de 250 cv. Não há aprendizado, não há conversas ou troca de experiências. Não há espera,  e nem reflexão, é "plug and play". Não há realidade envolvida... O cara simplemente passa a ter um canhão nas mãos e não tem a menor idéia de como usá-lo. E quando a realidade aparece nesses casos, em geral é em forma de um poste, árvore ou a traseira de um caminhão...

E há vinte anos atrás as cidades eram menores, menos populosas, os lugares tradicionais de rachas eram mais afastados e menos pessoas transitavam por eles.

Além disso, os meios de comunicação eram mais rudimentares, não havia celular, não haviam câmeras portáteis e não havia internet... Tudo isso modificava a dinamica das coisas pois você não poderia ter na manhã seguinte a péssima notícia de que a placa de seu carro havia sido filmada enquanto você estava acelerando na rua e agora estava na internet, em um video do Youtube...

Realmente, por diversos motivos, não dava mais para acelerar na rua. Então iríamos acelerar na pista... Se nos deixassem...

6 comentários:

  1. Tenho certeza de que muitos letores iram se identificar muito com a postagem. Eu li, e me pareceu um capitulo do livro da minha vida.

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  2. Nossa, belo texto. Nos leva a uma reflexão verdadeira, e não aquela provocada pelo drama e sansacionalismo da mídia, que infelizmente abordam temas sem na verdade conhecê-los para poder falar com propriedade sobre eles.

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  3. Bom post, boa redacao.
    Sou apaixonado pela mecanica automobilistica, gosto de pegas, da forma mais responsável possível.
    So' uma pergunta, voce faz o que da vida Vicente Queiroz ?

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  4. Obrigado pessoal. Vou contar toda a minha história com esse carro no blog, capítulo por capítulo. E pra isso preciso falar das coisas boas e ruins.

    Mas não foram só momentos ruins e em breve vai sair coisa mais alto astral por aí.

    Ao colega NKN: Eu trabalho com a fabricação de peças customizadas artesanais para alta performance. E faço parte da AD www.categoriadesafio.com.br, que é uma ótima iniciativa para quem gosta de performance, mas com responsabilidade.

    Abraços!

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  5. concordo plenamente com o post, chega a arrepiar algumas partes...mas referente aos "torra filme" não é só neste mundo q estes babacas atrapalham, mesmo sabendo q 98% deles tem 18, 19 anos,são os q enchem a cara num sabado a noite, depois da balada e saem na madruga rachando com os Corollas de seus pais nem q seja contra a propria sombra! e depois vem a noticia na midia de q os JOVENS são os mais inrresponsaveis no transito...como se todos os JOVENS fossem iguais!!! fazer o quê...
    mas no transito "comun" é a mesma coisa, hj morre mais gente no ruas do q em uma guerra..para mim, culpa de um sistema ineficaz, que coloca cada vez mais inexperientes na ruas, vide estas "auto-escolas" altamente lucrativas e pouco ensinantes e facilidade de se ter um carro, sem a minima experiencia ou conhecimento de transito!

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